A fantástica ciência do Antigo Egito- Parte 1

Fonte: Super Interessante - http://super.abril.com.br/ciencia/fantastica-ciencia-antigo-egito-444035.shtml

Conheça a história das maravilhas que o Antigo Egito deixou para o mundo e saiba por que o povo do Nilo era tão criativo.

por Karen Gimenez

clip_image002A herança deixada pelos faraós à humanidade vai muito além de pirâmides e sarcófagos dourados. Eles também nos legaram invenções sofisticadas e costumes curiosos que atravessaram os séculos e continuam vivos. Conheça todas as contribuições do povo do Nilo e descubra por que eles foram tão criativos, avançados e misteriosos.

Na sala, pai e filho estão entretidos com jogos de tabuleiro e bebem cerveja em um final de tarde de domingo. A perna engessada de um deles não permitiu que fossem a uma cervejaria. No quintal, as crianças se divertem brincando de amarelinha e entre os cães de estimação que correm derredor. Em um dos quartos, duas adolescentes experimentam novos cosméticos e cremes hidratantes, enquanto conversam sobre métodos contraceptivos e o teste de gravidez que a mais velha fará no dia seguinte. No quarto principal, uma mulher divide seus pensamentos entre a contabilidade de sua padaria e o divórcio prestes a se concretizar. Para amenizar a dor de cabeça, ela toma um remédio à base de ácido acetilsalicílico, o princípio ativo da aspirina.

Se alguém perguntasse onde e quando essa cena aconteceu, a resposta poderia muito bem ser o Brasil ou os Estados Unidos há muito pouco tempo. Mas, por mais incrível que possa parecer, se alguém respondesse que a situação deu-se no Egito no tempo dos faraós, estaria absolutamente certo. A chance de momentos como esses terem ocorrido durante o reinado de Tutancâmon ou Ramsés é praticamente tão grande quando no Ocidente do século 20.

Escondidos sob a mística de pirâmides e maldições de múmias, os avanços científicos e culturais dos povos do Antigo Egito costumam surpreender mesmo a quem se considera iniciado no assunto. Diversas descobertas atribuídas a europeus pós-Renascimento fizeram parte do cotidiano daqueles que viveram às margens do Nilo muitos séculos antes de Cristo. O histórico dessa lacuna científica é complexo, rende livros e mais livros. Mas o fato é que muitas coisas que se acredita serem méritos de um passado recente na verdade são muito, mas muito mais antigas que as nossas tataravós.

Da aspirina ao teste de gravidez

Uma das revelações mais impressionantes ao estudar a herança do Antigo Egito é seu desenvolvimento em medicina e farmacologia. Em O Legado do Antigo Egito, o egiptólogo Warren R. Dawson, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, cita papiros médicos datados de até mais de 40 séculos atrás retratando procedimentos médicos e remédios usados até hoje por profissionais da área de saúde. Substâncias como óleo de rícino, ácido acetilsalicílico, própolis para cicatrização e anestésicos já eram conhecidas. Os documentos descrevem cirurgias delicadas, o engessamento de membros com ossos quebrados e todo o sistema circulatório do corpo humano.

Antonio Brancaglion, historiador do Museu Nacional do Rio de Janeiro e membro da Associação Internacional dos Egiptólogos, conta que o desenvolvimento da medicina foi motivado, principalmente, pela quebra de um mito em relação à violação do corpo humano. “Outras povos da época, como sumérios e assírios, acreditavam que, se o corpo fosse aberto, a alma escaparia. É claro que isso sempre foi um impedimento para experimentos médicos”, diz Antonio. Entre os egípcios, no entanto, deu-se justamente o oposto.

A religião dos faraós deu uma senhora ajuda às descobertas médicas. “Eles acreditavam que para alcançar vida eterna a alma de seus mortos precisava de um corpo. Por isso, desenvolveram o que chamamos genericamente de mumificação”, afirma. A mumificação, na verdade, é um conjunto de procedimentos químicos e físicos que visava a preservação dos corpos (veja infográfico nas páginas 48 e 49). Esses processos exigiam a retirada cirúrgica de alguns órgãos internos, que eram separados uns dos outros. Em alguns casos, eles eram tratados e recolocados no lugar. Com isso, os egípcios passaram a conhecer o interior do corpo humano de uma forma inédita até então. Localizaram cada órgão e estudaram a relação entre eles. Embora estivessem errados em algumas de suas conclusões – eles acreditavam que o coração comandava nossos pensamentos – eles descobriram várias coisas que podiam ser aplicadas aos vivos.

Um dos melhores exemplos disso é o conhecimento sobre o sistema circulatório. O corpo de Ramsés II (1279 a 1212 a.C.) teve suas veias e artérias retiradas, mumificadas e recolocadas. O hábito de tomar o pulso do paciente como forma de avaliar sua saúde é descrito no papiro Ebers, datado de 1550 a.C. “O batimento cardíaco deve ser medido no pulso ou na garganta”, dizia o antigo documento, certamente um dos primeiros livros de medicina do mundo. Essa é outra inovação egípcia. Eles anotavam tudo nos chamados papiros médicos (alguns desses documentos serão citados no decorrer desta reportagem). Segundo Dawson, o conhecimento médico até então considerado era sagrado e geralmente transmitido por tradições orais. Os registros eram raríssimos. No Egito, a intensa documentação sobre os procedimentos médicos permitiu que esse conhecimento fosse passado com maior exatidão – embora não menos sagrado.

O conhecimento da circulação sanguínea é responsável por um costume que persiste até hoje: o uso da aliança de casamento. Para os egípcios, do coração partiam veias que o ligavam diretamente a cada um dos membros. Na mão esquerda, essa veia terminava no dedo anular. Acreditando que o coração era o centro de tudo e que ele está ligeiramente deslocado para o lado esquerdo do peito, os casais passaram a colocar uma fita no dedo anular esquerdo como forma de prender o coração do amado. Com o passar do tempo, essa fita foi substituída por um aro de metal que, dependendo das posses do casal, poderia ser o ouro. Bonito, não?

A mumificação mudou muito nos mais de 3 mil anos em que foi praticada. Com ela, evoluiu também o conhecimento que tinham do cérebro. As primeiras descrições do processo indicam que o cérebro era retirado pelo nariz e jogado fora junto com o conteúdo dos intestinos dos mortos. Mas, com o tempo, os egípcios passaram a relacionar o funcionamento do órgão com a coordenação motora. Há descrições completas de procedimentos cirúrgicos intracranianos nos papiros do século 15 a.C. No entanto, só recentemente, em 2001, especialistas da Universidade de Chicago, Estados Unidos, que realizaram tomografias em ossadas encontradas em Saqqara, um dos sítios arqueológicos mais importantes do Egito, conseguiram demonstrar casos em que os crânios abertos cirurgicamente apresentavam indícios de cicatrização, o que leva a crer que o paciente sobreviveu à operação. E melhor: ele não deve nem ter sentido muita dor. Continua

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