A CONFISSÃO
Corria o ano de 1959. Numa pequenina cidade do interior nordestino, lugar de população simples, muito carola, onde ainda hoje predomina a religião Católica Apostólica Romana, havia um padre conservador, homem de aproximadamente cinquenta anos, moreno, olhos claros, de estatura média, daqueles que só tirava a sotaina para dormir e tomar banho, o qual seguia à risca as orientações da Santa Madre Igreja.
Padre Mariano, como era conhecido, dirigia seu rebanho com mão de ferro, - se assim podemos nos expressar -, pois, sua missão de pároco exigia firmeza, porque os fies, apesar de serem assaz religiosos, não eram nada santos e tinham lá seus pecados cabeludos. No fundo, Padre Mariano não era má pessoa; era respeitado por todos, porém, o excesso de zelo tirava-lhe o mérito de ser amado.
As missas, o batismo, todos os sacramentos enfim, seguiam os trâmites ritualísticos de praxe. Como confessor, era inflexível nas penitências, quase sempre exageradas. Não ficava um pecado sem a devida correção em penitência, como meio de corrigenda ao pecador contumaz.
Certa feita, apareceu na igreja uma mulher jovem, aparentado os seus vinte e cinco anos procurando o padre para uma confissão. Este, solicitou alguns minutos enquanto se paramentava para atendê-la no confessionário e efetuar alguns preparativos para a missa cujo horário se aproximava.
Tal jovem, bem vestida, estatura média, corpo escultural, bem afeiçoada, morena de cabelos e olhos castanhos e tez macia, andar cadenciado e elegante, simpática, era, o que se pode afirmar, um primor de mulher. Chamava-se Ana Cristina. Mesmo abatida pelos seus problemas mais íntimos, pelos azorragues das vicissitudes da vida, ainda assim, revelava-se uma bela criatura.
A moça ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e iniciou o ato de constrição, em obediência ao mando do padre e, logo depois, iniciou sua auto incriminação.
- Sr. Padre, perdoe-me porque sou uma pobre pecadora!
- Não dirija o seu pedido de perdão a mim e sim, a Deus, que é todo misericordioso.
- Sim, Sr. Padre, somente o fiz por estar diante de um ministro Seu aqui na Terra.
- Muito bem, conte então os seus pecados, começando por aqueles que mais a incomodam.
- Sim Sr. Padre.
Pobre mulher! Apesar de sua simpatia natural, estava agora com o semblante pálido, fustigado pela opressão da dor que a afligia, pela infelicidade de se haver “perdido", por ter-se deixado embair por belas palavras, eivadas de pura ilusão, pelo amor que dedicava a seu amado que somente desejava dela se aproveitar, para em seguida abandoná-la à própria sorte, tangida pelos caprichos do destino.
Sim, tal criatura desditosa, posto que nascida na pobreza, perdera os pais ainda criança, teve que morar com parentes desnaturados, daqueles que não se importam em zelar por seus próprios rebentos e que, por essa razão, não teriam a honradez de assumir responsabilidades por uma garotinha órfã, mesmo sendo esta do seu próprio sangue.
Assim cresceu, sob o peso da carga de trabalho que lhe era imposta nos afazeres domésticos, da fome que lhe fora companheira em muitas ocasiões, das humilhações e do azorrague dos castigos que sofria por coisas banais. Aprendeu a ler, após a morte dos pais, que lhe ministraram as primeiras letras, por esforço próprio e com a ajuda de algumas coleguinhas mais chegadas, e assim, caminhando por sobre espinhos e abrolhos, atingiu a maior idade.
Aos dezesseis anos conhecera um jovem senhor por quem se afeiçoara, sendo este o seu primeiro namorado. O rapaz, dez anos mais velho que ela, bem parecido, do tipo atlético, moreno de cabelos pretos, sempre bem penteados, olhos castanhos, trabalhador, porém, mal caráter. Dificilmente cumpria o que prometia. Tinha uma facilidade enorme de conquistar e convencer as pessoas, tanto que não foi para ele nada complicado tirar proveito da situação e desonrar aquele que tanto amor lhe dedicara, com falsas promessas, para em seguida abandoná-la.
Àquela época, no interior do nordeste, em pleno sertão, para a mulher, perder a virgindade era como ficar órfã uma segunda vez, ou ainda pior, ter que carregar pelo restante dos seus dias uma pecha que a marcaria em definitivo, qual doença contagiosa, situação em que todos dela se afastavam por medo da contaminação. Era quase um crime. Se não tivesse posses, família que a amparasse ou uma boa profissão, para não mendigar ou passar fome, não teria outra alternativa que a da prostituição. E como não houvesse mais opção, aí se enquadrou a nossa protagonista.
Na realidade, Ana Cristina procurara os ofícios do padre mais para um desabafo, confiante no apoio de um ombro amigo que a consolasse dos sofrimentos que a martirizavam, do que para uma confissão propriamente dita. O padre, por sua vez, não era habituado a consolar, a sensibilizar-se com o sofrimento alheio, apesar de fazer parte do seu ofício. Dava conselhos, sim, orientava os que o procuravam, mas, no fundo, era indiferente e insensível.
- Sr. Padre, sou como já disse, uma pecadora que sobrevive de suas próprias carnes. Ando atormentada por não me ter surgido uma oportunidade de mudar de vida, de ter um trabalho descente, um companheiro e filhos. Sou, por esta razão, obrigada a servir a todo aquele que me paga para satisfazer os seus caprichos...
- Tudo, bem, já entendi, portanto, poupe-me dos detalhes. Lembre-se que está na Casa de Deus!
- Sim, Sr. Padre, não descerei às minúcias, apenas estou tentando me fazer compreender melhor, posto que o senhor, como homem de Deus, não deve saber muito dessas coisas.
- E não sei mesmo, mas, como você pode ver, sou um homem maduro e já ouvi muitas conversas semelhantes.
- Não mentirei, ao discorrer sobre a minha condição de mulher perdida, que não sinto um certo prazer ilusório, é claro, mas, passados aqueles momentos, quando caio em mim, vem o desgosto de ser o que realmente sou, aquela consternação lancinante que fere o oprime a alma.
- Por que não se dispõe a trabalhar, fazer alguma coisa útil na vida. Um emprego de doméstica, por exemplo de deixa essa vida de pecado?
- Já tentei. Entretanto, não é fácil. O preconceito ainda é muito grande, sem contar que, por ser jovem e bela, patrões e filhos não me deixaram trabalhar em paz com seus assédios e ameaças.
A confissão prosseguia em seu ritmo normal, porém, um tanto desagradável porque o padre, impassível e quase mudo, ouvia atentamente, mas não se apiedava daquela pobre alma que procurara em seu confessor o auxílio necessário à fortaleza de sua fé, o consolo para as dores que a premiam e laceravam seu coração de mulher sofrida. As lágrimas já se faziam visíveis sobre suas faces e mesmo quase que implorando uma palavra de conforto, pela sua triste narrativa, não era atendida em seu anseio. A indiferença do pároco fazia dela ainda mais infeliz. Felizmente, encerrou acrescentando:
- Pronto, seu padre. Espero a sua absolvição. Dê-me a penitência que melhor lhe aprouver.
- Não posso absolvê-la enquanto não mudar de vida. Saia dessa lida pecadora, case-se ou entre para um convento e venha aqui para concluirmos a confissão.
A decepção da moça era evidente. Um acesso de raiva invadiu seu corpo, mas, conteve-se, em respeito ao ambiente. Calou-se por um instante e pediu mentalmente a proteção de seus santos prediletos e do seu Anjo da Guarda, obtendo, desse modo, o controle da situação. Ato contínuo, num átimo, sentiu-se tomada por uma energia singular, talvez por haver desabafado, por ter dado vazão à mágoa represada em seu ser e pela pequena prece feita em silêncio, ponderou a conjuntura e arrazoou:
- Como? O Sr. me nega o perdão mesmo depois que eu me abri com o senhor e fiz, quem sabe, uma das mais sinceras confissões que o senhor já ouviu em todo o seu ministério? Não acredito.
- Pois acredite porque é a pura realidade. Não posso fugir aos meus princípios e deixar que os pecados superem a fé. Tenho de estar vigilante em cumprindo o meu dever de pároco, de cristão e de obediência aos ditames da Santa Sé.
- Sim, eu compreendo. Porém, lhe pergunto Sr. Vigário, por que os senhores pregam do púlpito, em sermões eloquentes, prenhes de belas frases, consoladoras muitas delas, de textos evangélicos que exaltam o nome de Deus Pai Misericordioso e de Cristo, com sua pregação piedosa, quando na prática, essa mesma Igreja nega o perdão dos pecados? Como conciliar? Somente aos pecadores é dado observar os mandamentos em favor da Igreja que se considera isenta? Onde está a caridade, cuja prática nos é exortada, porém, negligenciada por muitos dos chamados Homens de Deus?
Talvez estejamos ainda sob a ação dos resquícios nefastos da impiedosa Santa Inquisição, que ora dita seus autos de maneira diferente, mais branda, porém sutil.
Nem mesmo Cristo com toda autoridade moral que dispunha, condenou Madalena. Eu, contudo, não alcancei misericórdia de um ministro de sua Representação aqui na Terra que, equivocadamente pressupondo-se juiz investido de toga impoluta, ousou atirar-me a primeira pedra. Só me falta ser anátema. Oh Deus, tende piedade de mim!
Dito isto, benzeu-se e, como não havia mais nada a fazer ali, retirou-se desolada, abatida.
Padre Mariano ainda indiferente, não deu muita atenção ao que ouvira, indo cuidar dos seus afazeres habituais.
Mas, com o passar do tempo, percebeu que algo não estava bem com ele mesmo, pois, de vez em quando, lembrava-se das palavras daquela moça que, sem intenção alguma lhe improvisara a maior admoestação espiritual de toda sua vida.
Na missa da tarde daquele dia, era visível o abatimento do padre que tentava dissimular o seu incômodo estado depressivo. Não que estivesse doente fisicamente, mas, tomado por um sentimento de culpa que lhe invadia o íntimo. A lição recebida ecoava em seu cérebro qual ribombar de trovão precedido de raios que atingiam em cheio a sua alma, dilacerando-lhe o peito.
Findo o ato religioso, - que pela primeira vez teve sua formalidade quebrada, o que não passou despercebido pelos fies que sussurravam comentários a respeito da mudança no ritual litúrgico, - o padre recolheu-se em seus aposentos na Casa Paroquial e foi refletir melhor sobre o acontecimento. Orou, primeiramente, pedindo inspiração. Meditou por alguns minutos, leu trechos bíblicos do Antigo e do Novo Testamento e por fim, tomado de profundo arrependimento, pediu clemência a Deus e chorou copiosamente.
Daquele dia em diante os fies puderam contar com um padre menos severo, até porque não se muda da água pro vinho num piscar de olhos, mas, com o tempo, tornou-se mais compassível, mais humano, dando maior atenção aos conflitos daqueles que o procuravam.
Com a ajuda de paroquianos localizou Ana Cristina, a quem pediu o seu perdão, no que foi prontamente atendido, fazendo dela, a partir daquele momento, a sua melhor amiga.
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